Características da descrição e da narração

Neste artigo vamos fugir um pouco da nomenclatura na qual temos batido tanto que é a de gêneros textuais para nos prendermos àquela mais antiga, a que classificava os textos como descritivo, narrativo e dissertativo. Depois de dar algumas dicas sobre o que não fazer numa redação, vamos esmiuçar os recursos linguísticos empregados em alguns tipos de textos. Neste primeiro artigo veremos duas tipologias textuais: descrição e narração.

revisão-sobre-tipologias-textuais

O que é a Descrição? Característica do texto descritivo.

A descrição é um retrato que se faz de um objeto, pessoa, lugar ou situação. Esse retrato pode ser físico, psicológico ou social. A descrição, no texto narrativo, serve para que o leitor possa ter uma imagem mental do ser, visto que há a ausência do visual. Serve, outrossim, para que o leitor tenha uma maior intimidade com as personagens e com os lugares. Nas passagens puramente descritivas, não há a progressão temporal, é como se o tempo permanecesse estático, os dados são simultâneos. Não havendo a progressão temporal, também não haverá mudanças de estado. A descrição, por oposição à dissertação, particulariza o ser, não se fala “de ser humano”, mas “do ser humano”, de alguém em específico. Em suma, a descrição possui as seguintes características:

1.  é um retrato físico, social ou psicológico;
2.  não há progressão temporal;
3.  não há mudança de estado;
4.  os dados são simultâneos;
5.  particulariza o ser.

Vejamos alguns exemplos:


Texto A

Homicídios ficava num pardieiro velho na Presidente Vargas. Da janela do gabinete de Raul, podiam-se ver os carros percorrendo incessantemente a larga avenida que ligava a zona norte ao centro da cidade. As paredes do prédio eram sujas e esburacadas. Pelo chão, serpenteavam fios gastos de instalações de emergência que estavam ali há anos… [Rubem Fonseca. A grande arte.]

Texto B

No fundo do mato-virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite […] O divertimento dele era decepar cabeça de saúva […] Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos… [Mário de Andrade. Macunaíma]

Texto C

Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios e rituais de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. [Camus. A peste]

No texto A, temos a descrição de um lugar (“Homicídios”); no texto B, o retrato de uma personagem (“Macunaíma”); no texto C, a descrição de uma situação (a cidade foi tomada pela peste). Os textos de A a C estão inseridos em uma narração, mas constituem-se em passagens puramente descritivas. Em todos eles, há a particularização do ser.

Ferramentas da descrição

a) Uso do pretérito imperfeito do indicativo (passado durativo) com a finalidade de passar os hábitos e características das personagens:

Ricordanza delia mia gioventú

A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha mãe, ralhava…
Via naquilo a minha própria ruína!
[…]

Augusto dos Anjos. Lembrança da minha juventude.

b)  Uso de verbos de ligação como objetivo de introduzir características do ser:

Fragmento de Triste fim de Policarpo Quaresma

Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. […] o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro de Brasil. […] Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo: Quaresma era antes de tudo brasileiro.

Lima Barreto. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Scipione, 1997.

c)  Uso considerável de adjetivos e formas adjetivas com intuito de caracterizar o ser:

Em marcha para Canudos

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.
Tomaram pela Estrada de Cambaio.
É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale de Cariacá, numa cinta de terrenos férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras matas.
Transcorridos alguns quilómetros, porém, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do sopé da serra do Acaru.

Euclides da Cunha. Os sertões.

d)  Uso do presente do indicativo com o objetivo de descrever a realidade presente:

No adro da janela há pinga, café,
imagens, fenómenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.

O que é a Narração? As características do texto narrativo.

A narração apresenta como característica a progressão temporal e, por conseguinte, a mudança de estado. Os dados não são simultâneos, eles estão dispostos em uma progressão. Nela, são narrados fatos que se sucedem no tempo e no espaço. A narração supõe sempre um narrador, que conta a história. Este pode estar explícito ou implícito. Os quadrinhos, os filmes, as peças de teatro, os contos e os romances são exemplos de textos narrativos. A narrativa literária constitui-se num texto figurativo em que o autor utiliza-se de uma história para discutir um tema. As personagens representam, na realidade, o ser humano e seus conflitos existenciais; trata-se de uma maneira indireta de discutir um assunto. Deve-se, portanto, ter sempre em mente que, por detrás dos fatos e das personagens, está presente a problemática humana.

Eis as características do texto narrativo:

Narração:

  1. progressão temporal
  2. dados não simultâneos
  3. mudança de estado
  4. texto figurativo

Vejamos alguns exemplos:

Texto A

Estava Zaratustra, um dia, adormecido debaixo de uma figueira […] Veio, então, uma víbora e o mordeu no pescoço, o que fez Zaratustra gritar de dor. Após tirar o braço do rosto, olhou ele para a víbora: reconheceu esta, então, os olhos de Zaratustra e voltou-se contrafeita, querendo fugir.
“Não ” falou Zaratustra, “ainda não recebeste o meu agradecimento. Acordaste-me a tempo, meu caminho ainda é longo”. “O teu caminho ainda é curto”‘, disse, tristonha, a víbora; “o meu veneno mata”. Zaratustra sorriu. “Desde quando se viu um dragão morrer do veneno de volta! Não és bastante rica para dá-lo de presente a mim”. Então, a víbora atirou-se de novo ao seu pescoço e lambeu-lhe a ferida.

Friedrich W. Nietzche. Assim falou Zoratustra.

Texto B

…comecei a gostar dela. Um homem, depois de cinquenta, não namora, os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem reumatismos. Desde que há meia dúzia de prédios, é logo casamento […] Foi o diabo. Logo na igreja dei com a viuvinha olhando um convidado […] Estive quase a desmanchar tudo, na hora do “recebo vós” … “Não faz mal”, pensei porém, “gosto dela… Que diabo! Se casar com outra, não poderá suceder a mesma coisa?… Vá! É um gosto ao menos”. E atirei-me de cabeça.

Raul Pompeia. Tílburi de praça.

Nos dois textos citados anteriormente, empregou-se a narração, os fatos se sucedem, há progressão temporal. No texto A, temos um narrador em terceira pessoa, ele não participa da história; no texto B, há um narrador em primeira pessoa, ele é personagem da história.

Finalmente, é importante observar que, ao contar a história, o narrador pode fazer uso da descrição. É o que se vê em Raul Pompeia em “os dedos estão perros para o bandolim”. No texto a seguir, por exemplo, a descrição é concomitante à narração:

Delicadamente passou a polpa dos dedos na pele morna acetinada. Separou ternamente os dois rijos hemisférios musculares e admirou a penugem dourada iluminando…

Rubem Fonseca. A grande arte.

Ferramentas da narração

a)  Uso do perfeito para relatar as transformações:

O crime do negro abriu uma clareira silenciosa no meio do povo. Ficaram todos estarrecidos de espanto.

b)  Uso do discurso direto para reproduzir a voz da personagem.

— Mataram uma moça![…]

O discurso indireto livre e o discurso indireto também podem estar presentes. No indireto, temos os verbos dicendi (afirmou, disse, esbravejou, gritou) introduzem o discurso, o narrador assume o lugar da personagem, transmitindo o que esta disse (Eles disseram que mataram a moça). Quanto ao indireto livre, falaremos mais à frente sobre ele.

c)  Uso de descrições que acompanham a narração:

O preto ajoelhado bebia-lhe mudamente o último sorriso, e inclinava a cabeça de um lado para outro como se estivesse contemplando uma criança. […]

d)  Uso do presente para criar o efeito de vivacidade:

Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta esturvinhado à crise de uma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se, de novo.

Monteiro Lobato.

Foco narrativo

a)  Em primeira pessoa

Trata-se do narrador-personagem, narra e participa da história:

Mais infância

A cidade onde nasci era cercada de morros azuis, cobertos de mato povoado por princesas e castelos e animais de lenda, o Unicórnio, os cisnes que eram príncipes, os corvos que eram meninos enfeitiçados.
Bruxas voavam em vassouras, anões cavavam em minas de ouro enquanto Branca de Neve mordia a maçã da morte, a princesa beijava o sapo, e João e Maria tinham sido abandonados pelos pais.
—  Pai, como é que deixaram os filhinhos no mato escuro só porque não tinham comida?
—  Eles não sabiam o que fazer.
— E vocês nos deixariam na floresta se a nossa comida acabasse?
—  Claro que não, que pergunta.
—  Mas aqueles pais da história deixaram… Ele afagava minha cabeça, enternecido e divertido:
— Filha, o pai não vai te largar no mato nunca, fica tranquila.
— Mãe, por que o pai da Branca de Neve casou com uma rainha má que não gostava da filhinha dele?
— Não sei, para de perguntar bobagem.
Já naquele tempo eu gostava de criar meu próprio breve exílio, onde seria rainha de um momento.
O esconderijo podia ser embaixo da mesa da sala – eu me considerava invisível atrás da toalha comprida, de franjas; sob a escrivaninha de meu pai; dentro de um armário; entre arbustos no jardim.

Lya Luft. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004.

b)  Em terceira pessoa

O narrador-observador apenas relata os fatos, não participa da história:

O homem era bruto, de má índole; naquela tarde decidira “eliminar” os “empencilhos”, o sócio era uma peça estranha ao tabuleiro, o irmão também. Planejou o assassinato de ambos durante dois meses. Foram dias frios na pele e na alma. Marcos não sentia, raciocinava o tempo todo como uma máquina.

c)  Narrador onisciente

O narrador revela o passado da personagem, seu interior, estados psicológicos, pensamentos, ou até mesmo algo que tenha falado para si mesmo:

[…] Aposição incomoda acordou Carlos. Espreguiçou, empurrando com as mãos a dor do corpo, sentado por quê? Ah! Lembrança viva enxota qualquer sono. Hora e meia! Desejo furioso subiu. Sem reflexão, sem vergonha da fraqueza, corre pra porta de Frãulein. Fechada! Bate. Bate forte, com risco de acordar os outros, bate até aporta se abrir, entra.

Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2002.

d)  O narrador que se dirige ao leitor

O narrador dirige-se ao leitor, criando um efeito de aproximação:

A imobilidade é a sala de espera do sono. Procurou ler e cochilou. Vinte e três e trinta, se ergueu. Caceteação esperar! Também o momento estava estourando por aí, graças a Deus! Sentou na cama. Mais vinte e sete minutos. Vinte e seis… Vinte e cinco… Vinte e… Nos braços cruzados sobre a guarda da cama, a cabeça dele pousou.
A posição incomoda acordou Carlos. Espreguiçou, empurrando com as mãos a dor do corpo, sentado por quê? Ah! Lembrança viva enxota qualquer sono. Hora e meia! Desejo furioso subiu. Sem reflexão, sem vergonha da fraqueza, corre pra porta de Frãulein. Fechada! Bate. Bate forte, com risco de acordar os outros, bate até a porta se abrir, entra.
Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação – se ele der espaço para tanto entre os dois! – porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto.
[…]

Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2002.

e)  O narrador que comenta, a metalinguagem

O romance, por meio do narrador, comenta o próprio romance:

Começo a arrepender-me desse livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.

Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas.

Formas de prosa

a)  Conto:  é uma narrativa em que há um só conflito, um só drama, uma só ação: unidade de ação.Todos os componentes da história estão concentrados em uma única direção, ao redor de um só drama.

b)  Novela: por oposição ao conto, possui várias células dramáticas, os conflitos se relacionam; como afirma
Massaud Moisés: as unidades dramáticas são colocadas em ordem sucessiva, uma após a outra, fila indiana, interminavelmente […] nas novelas de cavalaria, as aventuras, que constituem as próprias células dramáticas, entrelaçam-se complicadamente e sucessivamente.

c)  Romance: na novela, o jogo das ações não é ambíguo, cada gesto guarda um único significado, a estrutura é fechada; no romance, a estrutura é aberta em todas as direções da realidade exterior, enquanto a novela minimiza a diversidade, o romance procura enfatizá-la. Se na novela temos uma sucessividade dramática, no romance há a simultaneidade.

d)  Crônica: trata-se de uma narrativa curta, focada no cotidiano. A maioria das crônicas narrativas apresentam um só núcleo de ação, um só tempo e um só espaço. São fatos do cotidiano narrados em uma linguagem compatível. São comuns os desvios de norma, tal procedimento procura dar mais veracidade à história. As crônicas também podem ser dissertativas, vide boa parte das crônicas jornalísticas.

Discurso indireto livre

A voz que narra confunde-se com a da personagem; revela-se o que esta pensa, ou o que ela diz para si mesma. Esse tipo de discurso não possui a pontuação do discurso direto (aspas, travessão, verbo dicendi), apresenta-se na terceira pessoa, mas uma terceira que substitui uma primeira. É frequente o emprego do pretérito imperfeito (“devia”, “tinha”, “havia”), do futuro do pretérito (diria, haveria…), de exclamações e de interrogações. Veja o exemplo a seguir.

Não podia ser, era honesto, não fazia mal a ninguém! Malditos! Eles não tinham o direito, não tinham… Estava louco? Era tudo imaginação? Fugiu desesperado em direção ao rio.

Graciliano Ramos. Vidas secas.

Monólogo interior

O monólogo interior pode ser definido como o fluxo de ideias; nele estão presentes, segundo Othon M. Garcia, a memória, a imaginação e os sentidos. A linguagem costuma ser desprovida de hábitos linguísticos socializados (às vezes, a pontuação é caótica para que possa remeter ao atropelo dos pensamentos). Veja o exemplo a seguir.

Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade.

Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres.

No texto de Clarice, há a revelação do momento interior que a escritora explora via autoanálise da personagem. A escritora emprega a descrição intimista, que se alinha com um projeto de educação existencial, característica da obra de Clarice.

Com isso, terminamos o primeiro artigo revisando as características de duas importantes tipologias textuais. No próximo texto, falaremos sobre a mais pedida, a dissertação.