Linguagem – socialização e enunciação
No artigo de hoje vamos nos aventurar pelo mundo da significação das palavras. Esta é uma competência que os alunos que fazem o Enem precisam ter. Isso porque é preciso ir além do decoreba tradicional e entender os vários sentidos que as palavras podem possuir. Sem introduções longas, sem teorias já de cara. Vejam a tirinha abaixo e já já conversamos:
Vamos conversar sobre a tirinha? Nela, observamos os recursos utilizados pelo cachorro e pelo papagaio para se comunicar, o cachorro rosna, mostra os dentes e altera seu olhar; o papagaio, que imita sons, reproduz palavras que ouve dos humanos com quem convive. Até aqui, tudo muito convencional. Porém, no último quadrinho, construindo o humor da tira, o papagaio, diante da ameaça do cachorro, é capaz de, “racionalmente”, criar uma frase de acordo com sua necessidade, assumindo uma característica exclusiva do ser humano: produzir enunciados. Daí a sensação de estranhamento que toma conta de Hagar (observe a expressão de seu rosto) e de nós, leitores.
LINGUAGEM E SOCIALIZAÇÃO
“Somente o homem é um animal político, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. A linguagem permite ao homem exprimir-se e é isso que torna possível a vida social”, disse Aristóteles (384-322 a.C).
O filósofo grego definiu o homem como político no sentido do vocábulo grego politikós, ou seja, cidadão, aquele que é capaz de viver na polis (cidade), em sociedade. E ele atribuía à capacidade de linguagem, que nos é inerente, o fato de os seres humanos conseguirem viver em sociedade.
A linguagem animal, constituída pela emissão de sons e comportamentos determinados, permite e garante a sobrevivência e perpetuação das espécies. Há, porém, grandes diferenças entre a linguagem animal e a linguagem humana. Enquanto a primeira é estática e condicionada, não consciente, a segunda é fruto do raciocínio, e a expressão por meio dela é consciente e intencional, não meramente instintiva. E mais, a linguagem humana é dinâmica e criativa.
Num primeiro momento, pode-se definir linguagem humana como todo sistema que, por meio da organização de sinais, permite a expressão ou a representação de ideias, desejos, sentimentos, emoções. Essa representação possibilita a leitura, o que concretiza a dinâmica da interação, da comunicação e, consequentemente, da socialização. Num segundo momento, pode-se defini-la como a capacidade inerente ao ser humano de aprender uma língua e de fazer uso dela.
“A linguagem é a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los […]. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. […] Nas práticas sociais, o homem cria a linguagem verbal. Ela é um dos meios para representar, organizar, transmitir o pensamento de forma específica. Há a linguagem verbal, a não verbal e seus cruzamentos verbo-visuais, audiovisual, audioverbo-visuais…”
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): ensino médio – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Semtec, 1998. p. 6.
LINGUAGEM VERBAL E LINGUAGEM NÃO VERBAL
“[…] texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc), isto é, qualquer tipo de comunicação realizada através de um sistema de signos”.
FÁVERO, L R; KOCH, I. V. Linguística textual: introdução. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 25.
Quando pensamos em linguagem como sistema organizado de sinais, associamos essa palavra à noção de linguagem verbal, ou seja, de língua. Mas linguagem, como já vimos, tem um conceito mais amplo: é todo sistema que permite a expressão ou representação de ideias e se concretiza em um texto.
Na linguagem visual, o signo é a imagem. Assim como acontece com a linguagem verbal, há inúmeros modos de organização dos signos visuais, decorrentes da relação que o ser humano estabelece entre a realidade e sua representação. Os artistas se valem intencionalmente desse recurso, procurando fazer o apreciador reagir diante dessa representação e levantar questionamentos sobre o que é de fato real e o que é imaginário e, indo mais além, sobre a própria ordenação do real. O crítico de arte Giulio Argan comenta: “Magritte pinta um cachimbo e escreve embaixo: ‘Isso não é um cachimbo’. De fato, não é um cachimbo; e a própria palavra cachimbo, que designa o cachimbo, não é um cachimbo. Eis o contraste entre coisas e signos na vida cotidiana”. (ARGAN, Giulio Cario. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.)
De fato, o desenho ou a foto de um cachimbo – ou a palavra cachimbo – não são o objeto cachimbo (uma pessoa não pode fumar o desenho, a foto ou a palavra). O objeto é a coisa; o desenho, a foto, a palavra são representações.
Cientes disso, podemos perceber a existência de diferentes linguagens à nossa volta. Linguagens que apelam a todos os nossos sentidos.
A linguagem da pintura explora linhas, cores, formas, luminosidade; a da escultura se vale de formas, volumes, tipos de material para a sua expressão. Os cartazes luminosos das ruas comerciais, por meio de luzes, figuras e linguagem verbal, tentam nos dizer alguma coisa. As histórias em quadrinhos que, via de regra, exploram imagens e palavras, realizam o cruzamento verbo-visual.
Representações simbólicas surgiram antes mesmo da escrita, como as gravuras rupestres e o sistema hieroglífico dos egípcios, em que signos, à maneira de desenhos, retratavam seres, situações, ritos e até histórias, expressas, primitivamente, sobre pedra, madeira e papiro. Na era da internet, utilizando o computador, os navegadores da rede mundial criaram um código especial para se comunicar, aproveitando os sinais gráficos oferecidos pelo teclado (as chamadas “caracteretas”::-) = sorriso;:-( = tristeza;;-) = piscada, cumplicidade; escrever com letras maiúsculas significa gritar, etc).
Outro exemplo de linguagem não verbal é a dos gestos, elaborada para a comunicação de surdos-mudos, em que sinais feitos com as mãos correspondem às letras e aos números.
Como você percebeu, diversos são os tipos de textos e os códigos utilizados na interação social, e um dos mais importantes é a língua. Recapitulando, reconhecemos dois grandes tipos de sistemas de signos:
• linguagem verbal => aquela que utiliza a língua (falada ou escrita);
• linguagem não verbal => aquela que utiliza qualquer código que não seja a palavra.
Neste blog o foco é a linguagem verbal, especificamente a língua portuguesa falada no Brasil. E mais: o livro apresenta uma característica fundamental da linguagem verbal que é a de se referir ou descrever a si mesma, portanto ele é um exemplo de metalinguagem.
OS SIGNOS VISUAIS
Signos visuais são componentes básicos dos códigos que possibilitam a expressão de uma ideia substituindo determinados objetos. Assim, são signos visuais o sinal vermelho do semáforo indicando “pare”, o polegar erguido numa mão fechada indicando “sim, OK”, etc.
Segundo a relação com o objeto a que se refere, o signo visual pode assumir diferentes representações do real. Destacamos três:
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ícone: signo que apresenta relação de semelhança ou analogia com o objeto a que se refere (é metafórico). São ícones: a fotografia, o diagrama, a planta de uma casa, etc.
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índice: signo que mantém uma relação natural causal, ou de contiguidade física, com o objeto a que se refere (é metonímico). São índices: a fumaça, que indica a presença de fogo; a nuvem negra no céu indicando chuva; uma pegada indicando a passagem de alguém ou de algum animal; a posição do cata-vento que indica a direção do vento, etc.
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símbolo: signo que se fundamenta numa convenção social e que, por isso, mantém uma relação convencional com o objeto a que se refere; é arbitrário, imotivado. São símbolos: o signo linguístico, a pomba branca (representação da paz), a cor vermelha (representação de perigo), a auréola (representação de santidade, pureza).
O SIGNO LINGUÍSTICO
Na linguagem verbal, que tem a língua como código, os signos linguísticos são os responsáveis pela representação das ideias. Esses signos são as próprias palavras, que, por meio da produção oral ou escrita, associamos a determinadas ideias. Daí afirmar-se que os signos linguísticos apresentam dois componentes: uma parte material, concreta (o som ou as letras), que denominamos significante; outra abstrata, conceituai (a ideia), que denominamos significado.
“[…] signos são entidades em que sons ou sequências de sons – ou as suas correspondências gráficas – estão ligados com significados ou conteúdos. […] Os signos são assim instrumentos de comunicação e representação, na medida em que, com eles, configuramos linguisticamente a realidade e distinguimos os objetos entre si”.
VILELA, M.; KOCH, I. G. V. Cromática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 2001. p. 17.
SIGNO LINGUÍSTICO
SIGNIFICANTE + SIGNIFICADO
significante: sequência sonora: /papagaio/ (ou representação gráfica: papagaio).
significado (conceito): ave da espécie dos psitaciformes ou psitacídeos, geralmente de penas verdes, que imita bem a voz humana.
Por exemplo, a palavra papagaio traz a ideia de “ave da espécie dos psitaciformes ou psitacídeos, geralmente de penas verdes, que imita bem a voz humana”. Entretanto, tal ligação entre representação (significante) e ideia (significado) é totalmente arbitrária, ou seja, não há nada indicando que deve haver uma relação entre elas. Trata-se de uma convenção; caso contrário não saberíamos a que a palavra papagaio faz referência. A significação das palavras tem de ser obrigatoriamente comum ao grupo social que faz uso de um mesmo código ou língua, para que a mensagem produzida possa ser entendida por todos.
Outro detalhe importante: a palavra papagaio não é o papagaio (a palavra papagaio não tem condições de imitar a sua voz, por exemplo), mas quando a pronunciamos (ou lemos), imediatamente nos vem a ideia da ave conhecida como papagaio. A coisa mencionada pode não estar diante de nós, mas o simples fato de evocá-la, dizendo a palavra que a nomeia, é suficiente para que sua imagem nos venha à mente.
O signo linguístico, isoladamente, não tem outra finalidade a não ser representar alguma coisa e, por isso, dizemos que a palavra isolada é neutra. No entanto, por diversas associações, um mesmo signo linguístico pode assumir diferentes significados:
O papagaio de Hagar é muito dócil.
Neste caso se refere à ave da espécie dos psitaciformes ou psitacídeos, geralmente de penas verdes, que imita bem a voz humana.
Essa menina é um papagaio.
Neste caso, menina tagarela ou que repete tudo o que escuta.
Os meninos brincaram a tarde toda de empinar papagaio.
Neste caso, brinquedo que consiste em uma armação de varetas de madeira leve, coberta de papel fino, e que, por meio de uma linha, se empina, mantendo-se no ar.
Vimos, portanto, que é o arranjo da palavra, sua articulação e combinação num enunciado textual (falado ou escrito) que concretiza e exterioriza uma ideia e a faz assumir este ou aquele sentido.
LINGUAGEM, LÍNGUA E FALA
Como você já viu, o ser humano utiliza diversos tipos de linguagem para expressar suas impressões -representar coisas, seres, ideias, sentimentos -, dentre elas a linguagem verbal.
A língua é um sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam, permitindo que expressemos uma ideia, uma emoção, uma ordem, um apelo, enfim, um enunciado de sentido completo capaz de estabelecer comunicação. É importante salientar que essas palavras e regras são comuns a todos os membros de uma determinada sociedade. Isso significa que a língua pertence a toda uma comunidade, como é o caso da língua que você fala – a língua portuguesa.
Quando um membro da comunidade, isto é, um falante faz uso da língua, ele realiza um ato de fala. A fala é um ato individual e depende de várias circunstâncias: do que vai ser falado e de que forma, da intencionalidade, do contexto, de quem fala e para quem se está falando. No entanto, o falante vale-se de um código já convencionado e instituído antes de ele nascer, ou seja, a criatividade de seu uso individual está limitada à estrutura da língua e às possibilidades que ela oferece.