Qual a diferença entre autor e narrador?

Qual a diferença entre autor e narrador? Como é que os narradores se posicionam em uma narrativa? É para responder a essas perguntas que volto ao tema Redação aqui neste artigo. O narrador é ser que pertence à história que está sendo narrada; conduz o fio narrativo. O autor, por sua vez, é um homem do mundo. Autor é o escritor. Mas é preciso lembrar sempre que o narrador é um preposto do autor e que, claro, muitas vezes o narrador diz coisas que coincidem com o que pensa o autor.

Querem um exemplo? Quem não se lembra do final do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas! “‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” Para quem conhece Machado, a história de sua vida, lá está o depoimento do epilético que preferiu não ter descendentes.

Os narradores podem manifestar-se de duas maneiras: em primeira pessoa, dando as suas narrativas um tom memorialista e pessoal, são personagens que contam sua vida ou de alguém muito próximo; ou podem, ainda, manifestar-se em terceira pessoa, contando a história de outras criaturas. Em terceira, colocam-se como meros observadores ou como oniscientes, podendo, assim, penetrar nos labirintos da “alma” de suas personagens.

O Romantismo deu preferência a narrativas em terceira, com narradores observadores. A partir do Realismo, eles aparecem sob a forma de observadores e oniscientes.

Por ultimo, aprenderemos também que os chamados tocos narrativos podem oscilar e encontraremos numa mesma história narradores observadores e oniscientes.

“É difícil defender, só com palavras, à vida.”

(João Cabral de Mello Neto)

Autor e narrador: diferenças

Qual é, afinal, a diferença entre Autor e Narrador? Existe uma diferença enorme entre ambos.

Autor

É um homem do mundo: tem carteira de identidade, vai ao supermercado, masca chiclete, eventualmente teve sarampo na infância e, mais eventualmente ainda, pode até tocar trombone, piano, flauta transversal. Paga imposto.

Narrador

É um ser intradiegético, ou seja, um ser que pertence à história que está sendo narrada. Está claro que é um preposto do autor, mas isso não significa que defenda nem compartilhe suas ideias. Se assim fosse, Machado de Assis seria um crápula como Bentinho ou um bígamo, porque, casado com Carolina Xavier de Novais, casou-se também com Capitu, foi amante de Virgília e de um sem-número de mulheres que permeiam seus contos e romances.

O narrador passa a existir a partir do instante que se abre o livro e ele, em primeira ou terceira pessoa, contar-nos-á a história que o livro guarda. Confundir narrador e autor é fazer a loucura de imaginar que, morto o autor, todos os seus narradores morreriam junto com ele e que, portanto, não disporíamos mais de nenhuma narrativa dele.

Tipos de focos narrativos

Agora que você já sabe a diferença entre autor e narrador, passemos às escolhas que o último faz para narrar. Esta escolha se chama foco narrativo, ou seja,’a posição em que o narrador assume a pessoa do discurso por que

O foco narrativo é também chamado ponto de vista do narrador, ou seja, significa como, em que posição o narrador vai contar a história. Há, para isso, dois modos: ou narrará em Ia ou escolherá narrar em 3a pessoa.

1. Narrador em primeira pessoa (personagem narradora)

É, geralmente, a personagem principal; daí o tom memorialista que o relato adquire. Paulo Honório, de São Bernardo, ou Bento Santiago, de D. Casmurro, são personagens-narradoras: contam suas próprias histórias. Nem sempre, no entanto, os narradores em primeira pessoa são as personagens protagonistas: em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, a personagem que narra os fatos é José Fernandes, coadjuvante; o protagonista é Jacinto de Tormes. Observe os textos abaixo:

 Texto 1 – Sem aviso

Tanta coisa que então eu não sabia. Nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol das três horas. Também não me tinham falado deste ritmo tão seco, desta martelada de poeira. Que poeira, tinham me dito. Mas o passarinho que vem para minha esperança do horizonte abra asas abertas, um bico de águia inclinado rindo. Quando nos álbuns de adolescente eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava. Também não sabia no que dá mentir. Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso -já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.

(Clarice Lispector, “Fundo de Gaveta”, in A Legião Estrangeira)

Texto 2 – A Cidade e as Serras

Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do Bairro Latino, para onde me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sonde, quando aqueles malvados me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de procissão, na Sofia, a cara sórdida do Doutor Pais Pita.
Ora, nesse tempo Jacinto concebera uma ideia… Este Príncipe concebera a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado.” (…)
Por uma conclusão bem natural, a ideia de civilização, para Jacinto, não se separava da imagem da cidade, de uma enorme cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejavam os vergéis e lezírias de trinta províncias (…)”

(Eça de Queirós)

No primeiro texto, você pode observar o típico narrador protagonista. Ele é o centro da ação que narra e todos os acontecimentos giram ao seu redor, bem como impressões e sentimentos; no segundo texto, o narrador é secundário, amigo da personagem protagonista. Mas narra em Ia pessoa, usando como recurso a primeira pessoa do plural quando se inclui na narrativa.

O romance A Cidade e as Serras é um bom exemplo de narrador coadjuvante porque todas as ações narrativas estão centradas em Jacinto de Tormes e ele, José Fernandes, a tudo observa.

2. Narrador em terceira pessoa

Este tipo de narrador não é personagem do que narra. Ele apenas relata os fatos, registra as ações de uma história que não é a sua. Pode ser visto sob dois aspectos:

a) Narrador observador

E apenas um observador e conta os fatos como espectador de uma história. Façamos uma comparação com a vida real: é alguém que, tal como um narrador esportivo, vê e relata, por exemplo, um jogo de futebol. Está do lado de fora da partida, narra o que vê.

Texto 3 – O Guerreiro

Retumba a festa na taba dos araguaias.
As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.
Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas à grande taba do chefe.
Era a festa Querreira de Jasuaré. filho de Camacan,
No fundo da ocara preside o conselho dos anciões, que decide da paz ou da guerra e governa a valente nação.
Os anciões sentados no longo girau contemplam taciturnos a geração de guerreiros que eles ensinaram a combater, e têm saudades da passada glória.
Suspenso em frente deles está o grande arco da nação Araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.
É a insígnia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguaré, conquistou na mocidade e ainda conserva, pois ninguém ousa disputá-la.

(José de Alencar — Ubirajara)

b) Narrador onisciente

Também narra em terceira pessoa, tal como o primeiro, mas é capaz de penetrar na intimidade de suas personagens; não só relata os fatos, mas traz para o texto tudo o que suas personagens pensam e sentem, revelando-lhes o mundo interior, desejos, frustrações, alegrias, ódios.
Este tipo de narrador desvenda o mundo interior das personagens, aponta e mostra ao leitor todas as emoções que elas guardam em si:

Texto 4 – O crime do Padre Amaro

Todavia o escrevente vivia ainda inquieto; amargurava-o encontrar o pároco instalado ali todas as noites, com a face próspera, a perna trançada, gozando a veneração das velhas. “A Ameliazinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel…”, mas ele sabia que o pároco a desejava, a “cocava”; e apesar do juramento dela pela sua salvação, da certeza que não havia nada – temia que ela fosse lentamente penetrada por aquela admiração caturra das velhas, para quem o senhor pároco era um anjo; só se contentaria em arrancar Amélia {já empregado no governo civil) àquela casa beata; mas essa felicidade tardava a chegar -e saía todas as noites da rua da Misericórdia mais apaixonado, com a vida estragada de ciúmes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até tarde; às vezes voltava ainda a ver as janelas fechadas da casa dela; ia depois à alameda, ao pé do rio, mas o frio ramalhar das árvores sobre a água negra entristecia-o mais.

(Eço de Queirós)

Considere, no entanto, que temos ainda um  terceiro tipo de foco narrativo: o chamado misto. Nenhuma narrativa sustenta apenas um dos tipos que estudamos acima; portanto, é comum que encontremos em uma só narrativa a alternância de focos: ora se apresenta o narrador como apenas observador, ora é onisciente e nos revela o universo interior dos seres que compõem a história que conta.