Memórias de um sargento de milícias

“Filho de uma pisadela e de um beliscão…”
(um romance extemporâneo)

Memórias de um sargento de milícias é o que podemos chamar de romance inesquecível. Publicado sob a forma de folhetins entre os anos de 1852 e 53, no suplemento A pacotilha do Correio mercantil do Rio de Janeiro, vinha assinado com o pseudônimo Um brasileiro. Nessa época, seu autor, Manuel Antônio de Almeida, trabalhava como editor daquele jornal, era estudante de Medicina e não havia, ainda, completado 22 anos. Mais tarde seria nomeado administrador da Tipografia Nacional (o que corresponderia hoje a trabalhar no Diário Oficial da União) e conhece Machado de Assis, ainda aprendiz de tipógrafo, a quem muito ajudou.
Este romance é extemporâneo porque, embora escrito em pleno Romantismo, não se encaixa nele tematicamente. Está, por assim dizer, fora de sua época, de seu tempo. É um romance que em tudo se aproxima do realista, inclusive o desempenho do protagonista que possui características de anti-herói. Alguns teóricos o classificam com picaresco.

“Em Macedo, a veracidade dos costumes fluminenses aparece distorcida pela cumplicidade tácita com a leitora que quer ora rir, ora chorar, de onde resulta um realismo de segunda mão, não raro rasteiro e lamuriento. Em Manuel Antônio, o compromisso é mais alto e legítimo, porque se faz entre o relato de um momento histórico (o Rio sob d. João VI) e uma visão desenganada da existência, fonte do humor difuso no seu único romance. […] A mesma atenção é dada aos homens e mulheres que vão e vêm pelos becos do velho Rio, e dos quais o observador nota ora o ofício (‘Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria’), ora os caracteres físicos: ‘Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota…’; “um colega de Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante”…
Mas o realismo de Manuel Antônio de Almeida não se esgota nas linhas meio caricaturais com que define uma variada galeria de tipos populares. O seu valor reside principalmente em ter captado, pelo fluxo narrativo, uma das marcas da vida na pobreza, que é a perpétua sujeição à necessidade, sentida de modo fatalista como o destino de cada um. Esse contínuo esforço de driblar o acaso das condições adversas e a avidez de gozar de intervalos de boa sorte impelem os figurantes das Memórias, e, em primeiro lugar, o anti-herói Leonardo, “filho de uma pisadela e de um beliscão” para a roda viva de pequenos engodos e demandas de emprego, entremeadas com ciganagens e patuscadas que dão motivo ao romancista para fazer entrar em cena tipos e costumes do velho Rio. É supérfluo esclarecer o valor documental da obra.”

(Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, opus cif., pp. 146-7)

O romance, quando publicado em folhetins, e mesmo ao se transformar, em 1854 e 55, em dois volumes, não fez grande sucesso. Redescoberto pelos modernistas, transformou-se em obra-prima no século XX, pela qualidade dos temas e tipos que retrata.

O enredo é debochado:

Vinham, no mesmo navio, para o Brasil, Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça. Ele, “fugido do mal que fizera a uma moça”; ela, cansada de vender hortaliças e cheiros nas praças de Lisboa. Ainda no navio, por meio de “uma pisadela e de um beliscão”, código das “cantadas” da época, Maria engravida.
Mal chegados ao Rio, vão morar juntos no subúrbio.
Nasce Leonardo, vermelho e chorão, e mama duas horas seguidas depois de nascer. É batizado pela comadre, a parteira, mulher de gênio forte, fuxiqueira; e pelo padrinho barbeiro, homem bom e atencioso, solteiro e tocador de rabeca.
Enquanto o pai trabalha como meirinho e se corrompe, a criança cresce e a mãe trai descaradamente o marido.
Um dia, Leonardo Pataca surpreende a mulher adúltera; Maria foge com o capitão do navio que os trouxera de Portugal, Leonardo Pataca abandona o menino aos cuidados do padrinho.
Nosso anti-herói cresceu fazendo malandragens, metido em confusões. Dos sonhos do padrinho, fazê-lo padre ou advogado, nenhum se concretizou. E Leonardo passa a levar a vida folgadamente, transformando-se em um “vadio-mestre”.
Apaixona-se por Luisinha, sobrinha de dona Maria. Mas Luisinha também não se encaixa no modelo romântico: tinha “perdido as graças de menina”, mas ainda não era moça; era feia, franja sobre os olhos, escondida pelos cantos, vestidos que dançavam no corpo, braços muito compridos…
Luisinha casa-se, por artes da madrinha, com José Miguel, preposto de d. Maria. Leonardo põe-se a amar Vidinha e frequentar as rodas mal faladas da cidade, perseguido pelo major Vidigal. Preso, vai ser libertado com a ajuda de comadres; solto, conseguirá o emprego de sargento de milícias (sargento da polícia) por vontade e auxílio do Major.
Luisinha fica viúva, rica, bonita. Casa-se com o garboso militar…

Glossário

  • extemporâneo – fora do tempo, fora de época
  • picaresco – que tem tradição na personagem picara, uma espécie de “herói do avesso”, mas sem maldade. D.
    Quixote é um bom exemplo da tradição que hoje chamamos picara
  • difuso – não circunscrito; ampliado
  • algibebe – aprendiz de alfaiate, aquele que vende ou fabrica roupas de tecido ordinário
  • saloia – grosseria; mística; camponesa das cercassias de Lisboa
  • gaiato – vadio; malicioso; travesso
  • ciganagens – comportamento de ciganos; vadiagem
  • patuscadas – farra; reunião festiva
  • cheiros – temperos